Sob bênçãos e omissões da Igreja, estado e polícia seguem matando crianças pretas e periféricas
Pretos, pobres e favelados devem morrer para que o “reino dos céus” se estabeleça na sociedade brasileira. Por Ricardo Nêggo Tom
Publicado por Brasil247 em 12 de agosto de 2023
Chega de disseminar discurso prolixo sob retóricas acadêmicas para falar do genocídio perpetrado pelo Estado contra a população preta, pobre e periférica, se esse discurso não é capaz de promover uma mudança efetiva nesse comportamento, e nem de fazer com que os meios cabíveis para persuadir a sociedade a reagir contra essa barbárie sejam aplicados. A reflexão aqui é: até quando uma sociedade dita civilizada conseguirá conviver harmonicamente com cadáveres socialmente insepultos, que representam o seu lado sombra e o seu descaso pela vida do outro?
Não faz uma semana que o garoto Thiago Flausino, de 13 anos de idade, foi executado com cinco tiros por um agente de uma força de segurança do estado brasileiro, e já estamos novamente tendo que falar sobre a morte de outra criança preta, esta de apenas cinco anos de idade, vítima da letalidade dessa mesma força de segurança. A menina Eloá, segundo relatos de uma prima, brincava em cima de sua cama, quando a Polícia Militar reprimia com tiros de armas letais, um protesto de moradores contra a morte de um jovem de 18 anos, também executado por agentes dessa mesma instituição, supostamente por ter trocado tiros com policiais após ter se recusado a parar numa blitz.
Puta que o pariu, mil vezes, para a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. E se a minha linguagem no início deste parágrafo deixa quem lê esse artigo chocado, devo crer que o assassinato de mais uma criança pelo estado brasileiro deve deixá-lo em inconsolável desespero. Do contrário, você é só mais um membro da sociedade dos hipócritas mortos por dentro, que não se indigna com o retrocesso civilizatório que estamos vivenciando. Se é que a humanidade realmente já foi civilizada algum dia. Isso também vale uma reflexão.
E, da mesma forma que a Polícia Militar aponta suas armas, escolhe uma criança preta como alvo e atira, eu vou morar e atirar numa outra instituição que, nos últimos tempos, se uniu ao projeto necro político do estado e vem dando, através do silêncio e da omissão de sua responsabilidade social, a sua bênção para que mais vidas pretas, pobres e periféricas sejam violadas e abatidas. A igreja. Sobretudo, a dita evangélica, cujos líderes mais exponenciais do segmento são apoiadores declarados do fascismo e da violência que ele representa.
Esses picaretas e estelionatários da fé, juntamente com boa parte dos fiéis, nem todos incautos, que os seguem e dão poder a pseudo autoridade divina que eles alegam ter recebido de Deus, enxergam um viés diabólico no empoderamento feminino da boneca Barbie, mas não enxergam que o diabo, figura judaico-cristã que eles mesmos dizem que veio para roubar, matar e destruir, anda vestindo farda e matando os pobres que o Jesus que eles dizem seguir e amar incondicionalmente, sempre dedicou maior carinho e atenção. Enquanto o progressismo de uma boneca suscita a fúria dessa gente de bem e defensora dos valores cristãos, o assassinato de crianças inocentes não mobiliza nenhum posicionamento por parte deles. Alguém já viu Silas Malafaia levantando o tom da sua voz estridente, irritante e insuportável, para protestar contra o modus operandi da PM? Será que na sua igreja não congrega pretos, pobres e periféricos, que ainda são obrigados a lhe dar 10% de seus salários para garantirem os seus lugares num céu onde o tratamento a eles dispensados seja menos hostil do que a favela onde moram?
Alguém já viu o Padre Marcelo Rossi, um dos grandes expoentes do cristianismo católico brasileiro, que ultimamente tem andado mais preocupado com seu shape de marombeiro do que com o evangelho, se manifestar em repúdio contra essas ações violentas da PM, que resultam na morte de crianças indefesas? Será que ele não percebe que esses pobres “animaizinhos” estão sendo abatidos de dois em dois, enquanto ele e os cristãos que o tem como líder seguem erguendo as mãos e dando glória à Deus? Glória por que? Pela morte de inocentes socialmente vulneráveis ou pela vida de religiosos hipócritas economicamente favorecidos? Será que Jesus Cristo se calaria diante de tanto horror e ausência de humanidade? Não foi ele quem disse: “deixem vir a mim as crianças e não as impeçam, pois o reino dos céus pertence aos semelhantes a elas”? Ou será que a igreja entende essa sistemática execução de crianças e adolescentes pelo estado, como uma forma de enviar esses pequeninos ao reino dos céus por atacado?
Alguém ainda acredita, de fato , que muitos desses senhores e senhoras que se apresentam como escolhidos por Deus sob títulos clérigos, estão realmente preocupados com a salvação de seus fiéis? Não foi Jesus quem também disse: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância ” ? Não irei me assustar se algum hipócrita escrever nos comentários que não se deve criticar um ungido do senhor. Só se estiverem se referindo a ungidos do senhor governador Cláudio Castro que, não por coincidência, é um ex cantor católico e um legítimo representante do cristianismo assassino, com o perdão da historicidade pleonástica da colocação, que alçou Jair Bolsonaro, um ladrão de jóias mequetrefe e trapalhão, a condição de messias e salvador da nação brasileira. Um sujeito que sempre incitou o fuzilamento de opositores ideológicos, potencializando o viés criminoso das forças de segurança que estavam àquela altura sob a obediência do seu desgoverno.
Eloá Passos, de 5 anos de idade, foi baleada dentro do local que deveria ser o céu da sua existência e segurança. A sua casa. Mais uma criança que teve a sua vida e os seus sonhos ceifados pela letalidade do Estado. Quando o presidente Lula, durante visita ao Rio de Janeiro, passou uma reprimenda pública ao governador do Rio de Janeiro, alertando que a polícia deve aprender a distinguir pobres de criminosos, embora boa parte da sociedade associe a periferia ao crime, todos os presentes aplaudiram sua fala. Ou, quase todos. O novo senhor da guerra contra pretos, pobres e periféricos, Cláudio Castro, ficou visivelmente emburrado e, se pudesse, teria fuzilado Lula em cima daquele palco. Assim como o seu ídolo Bolsonaro um dia sugeriu. Uma clara demonstração de que não abrirá mão de sua política de segurança genocida, que transforma policiais, agentes que deveriam garantir a segurança da população, em algozes e carrascos da mesma. Uma mudança radical no modelo de segurança pública se faz urgente e passa pela desmilitarização da polícia operacional. Um tema que segue sendo empurrado com a barriga, enquanto seguimos acumulando crianças e adolescentes periféricos mortos. O estado não gosta de crianças pretas e periféricas. A igreja também não anda muito preocupada com elas. Parte da sociedade, principalmente a nossa elite do atraso, as considera criminosos em potenciais. Espero que Deus, pelo menos ele, tenha mais piedade dessas vidas inocentes. Mas, sinceramente, diante de tantos fatos e acontecimentos tão tristes que as envolvem, não sei como ele poderia nos demonstrar isso.
Cantor, compositor, produtor e apresentador do programa Um Tom de resistência na TV 247