Minha visão sobre Dois Papas

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Minha visão sobre Dois Papas

“Ao mesmo tempo em que ilumina a atuação lamentável de Francisco sob a ditadura militar argentina, novo filme de Fernando Meirelles mantem na sombra o papel de Bento XVI na perseguição a teólogos progressistas e nada diz sobre seu silêncio sobre a pedofilia,” escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia

28 de dezembro de 2019, 10:47 h

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Por Paulo Moreira Leite, para o Jornalistas pela Democracia – Sejam críticos com larga experiência no ramo, ou jornalistas com uma passagem de alguns anos na cobertura de cinema, como ocorreu ao longo de minha vida profissional, o ambiente geral em torno de Dois Papas é de aplauso contínuo e mesmo êxtase.

Cheguei ao final de “Dois Papas” convencido de que o filme de Fernando Meirelles — uma obra tecnicamente impecável, atores excelentes, um roteiro claro, bela trilha sonora — não consegue apresentar um relato convincente sobre o convívio de Francisco e Bento XVI, os dois Papas que se encontram a frente da Igreja Católica de 2005 até nossos dias.

Não sou o único, porém. No texto intitulado “Filme de Meirelles sobre papas peca pela ausência dos irmãos Boff” o colunista Plínio Fraga, do UOL, lamenta a ausência de um episódio fundamental do mundo católico em tempos recentes, que foi a perseguição e posterior censura imposta aos irmãos Clodóvis e Leonardo Boff, dois dos mais importantes teólogos de nossa época.

Personagens de relevância mundial na tentativa de questionar a acomodação da cúpula da Igreja Católica com a ordem vigente no planeta, em 1984 os dois irmão foram alvo do Cardeal Ratzinger, futuro Bento XVI, então titular da Congregação da Doutrina da Fé, versão moderna da Inquisição que deixou uma herança de intolerância e violência na cultura ocidental.

Plínio Fraga lembra que “Ratzinger sufocou no mundo todo a pregação da teologia da Libertação, acusando-a de ser mais fiel a Marx do que a Cristo. Além dos irmãos Boff, puniu o teólogo que os inspirou, o peruano Gustavo Gutiérrez”.

Obviamente o ataque aos irmãos Boff não foi uma disputa espiritual. Numa época em que o Vaticano se alinhava com a política externa de Ronald Reagan a diplomacia de João Paulo II na América Latina consistia em enfraquecer lideranças como dom Helder Câmara (1909-1999) e dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), empenhados em denunciar o regime militar no Brasil e em outros países do Continente.

O resultado dessa investida de fora para dentro é que a teologia da Libertação foi estigmatizada e seu potencial de influenciar mudanças acabou reduzido, num processo que ajudou a consolidar o caráter conservador da transição política que se seguiu ao fim do ciclo militar.

Embora tenha desempenhado um papel essencial na resistência, seja através de gestos e iniciativas memoráveis de mobilização política, seja pela publicação do sempre indispensável “Brasil: Nunca Mais,” que serviria de exemplo para vários países da região, dom Paulo teve seu espaço de atuação deliberadamente reduzido a partir de então. Por ordem do Vaticano, até a área geográfica de sua arquidiocese foi dividida em quatro.

“Dois Papas” realiza uma importante reconstituição do papel desempenhado pelo jovem padre Jorge Mario Bergoglio durante a ditadura militar argentina. O filme retira do esquecimento uma denúncia que o combativo jornalista Horácio Verbitsky divulgou em 2013, no momento em que a sucessão de Bento XVI foi decidida.

Empregando imagens em branco-e-preto — recurso que dá um tom artificial de reportagem a uma dramatização — “Dois Papas” mostra o futuro papa Francisco numa postura fraca e vacilante, capaz de trair religiosos e militantes católicos empenhados na resistência a uma das mais cruéis ditaduras da América do Sul.

Numa das cenas, Bergoglio chega a ser exibido como interlocutor de um personagem não identificado mas que possui traços fisionômicos que lembram o Almirante Emílio Massera, um dos manda-chuvas da Junta Militar que aterrorizava os argentinos através do massacre e da tortura.

Numa das cenas importantes do filme, Bento XVI (Anthony Hopkins) questiona o comportamento de Bergoglio (Jonathan Pryce). Deixando claro que está a par de episódios obscuros que marcaram a biografia do interlocutor, Bento XVI insinua que este costuma fazer “concessões” ao longo da vida. Bergoglio corrige: “Não. Eu mudei”, frase consistente com o comportamento que iria assumir nas últimas décadas.

Implacável no perfil de Bergoglio/Francisco, “Dois Papas” jamais apresenta cenas explícitas no retrato de Ratzinger/Bento XVI. Sua passagem pela Juventude Nazista, na Segunda Guerra Mundial, sequer é mencionada. Tampouco se recorda que, durante seu papado, ganhou força uma campanha pela canonização de Pio XII, até hoje criticado pelo silêncio diante da perseguição de judeus por Adolf Hitler.

Num período em que a medicina comprovou-se incapaz de oferecer remédios científicos contra a AIDS, Bento XVI fez uma campanha deletéria contra o uso de preservativos. Quando as mulheres conquistavam o direito sobre seu próprio corpo, Bento XVI ressuscitou velhas campanhas contra a legalização do aborto, que tiveram eco em vários países, inclusive no Brasil.

Herdeiro da mais grave crise moral da história do catolicismo — as revelações monstruosas sobre pedofilia — Bento XVI manteve um silencioso obsequioso a respeito. Mas o filme está longe de dedicar a este comportamento mesma atenção crítica, detalhada, que dispensa às pesarosas andanças de Bergoglio pelo porão militar argentino.

Bento XVI ficou de boca fechada quando o Boston Globe ganhou o Pulitzer e todos os prêmios importantes do jornalismo mundial ao publicar uma série histórica sobre o assunto, no final do papado de João Paulo II. Este silêncio chocante só foi rompido num documento de 18 páginas que veio a público há poucos meses, no qual ele responsabiliza a luta da juventude de maio de 1968 pela submissão sexual de crianças e adolescentes por parte de padres e bispos que em última análise deviam obediência ao Sumo Pontíficie.

No tom de quem procura apagar qualquer vestígio de responsabilidade, sua ou da instituição, o Papa Emérito escreve: “Pode-se dizer que nos 20 anos entre 1960 e 1980 os padrões até então veiculados em relação à sexualidade entraram completamente em colapso e surgiu uma nova normalidade, que até agora tem sido objeto de várias tentativas laboriosas de disrupção” (El País, 11/04/2019).

Numa reportagem sobre o documento, El País observa que o Papa emérito vai longe na “demonização” desse período e afirma que “parte da fisionomia da Revolução de 68 foi que a pedofilia também foi diagnosticada como permitida e apropriada”.

Num planeta que hoje enfrenta um processo definido como “crise civilizatória” por vários estudiosos, marcado por um recuo da democracia e retrocesso social em várias latitudes, todo esforço de aproximação entre povos, países, religiões e correntes políticas deve ser aplaudido e estimulado.

Não há dúvida de que essa é a intenção de “Dois Papas,”o que explica uma acolhida tão favorável.

Não há uma razão para se questionar o talento de Fernando Meirelles como cineasta, cuja competência o mundo inteiro aprendeu a admirar desde o sucesso de Cidade de Deus.

Em “Dois Papas”, no entanto, a distancia entre o que se vê na tela e aquilo que se passou na vida real, representa uma dificuldade intransponível para o sucesso de sua missão.

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