Aras e Bozo, irmãos siameses

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Jair Bolsonaro cochicha com procurador-geral da República, Augusto Aras (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

Aras e Bozo, irmãos siameses

“Cego, surdo e mudo face à condução da crise sanitária pelo Executivo, o PGR porta uma imensa responsabilidade. Seus atos mais recentes mostram cumplicidade com o genocida”, escreve o colunista Milton Blay. “São irmãos siameses unidos pelo ódio ao Estado Democrático de Direito”

24 de janeiro de 2021

Por Milton Blay

Geraldo Brindeiro entrou para a história como o “engavetador geral da República”, o homem que arquivou  mil e um  supostos autos criminosos contra FHC e seus aliados, evitando assim que as falcatruas tucanas viessem à tona. 

Os números são eloquentes: de 626 inquéritos criminais que recebeu como procurador-geral da República, engavetou 242 e arquivou outros 217. Total: 459. Somente 60 denúncias foram aceitas. As acusações recaíam sobre 194 deputados, 33 senadores, 11 ministros e quatro sobre o próprio presidente. Por conta disso, recebeu o jocoso apelido. Entre as denúncias que engavetou está o maior escândalo da era Fernando Henrique Cardoso, a compra de votos para aprovação da emenda constitucional que aprovou a reeleição para presidente.

O tempo de Brindeiro passou. Assumiu Rodrigo Janot, responsável pelas denúncias por corrupção de cinco presidentes e ex-presidentes, inclusive Michel Temer, em exercício, que só escapou do processo graças ao voto do Congresso impedindo a sua abertura. Janot foi acusado de ter formulado acusações sem fundamento jurídico e imposto a sua agenda, paralisando o Executivo e o Legislativo. Entrou no barco da Lava Jato e perdeu o controle, inclusive de si mesmo. Em entrevista concedida para divulgar seu livro de memórias confessou que chegou a entrar armado no Supremo Tribunal Federal para matar o ministro Gilmar Mendes. 

Chegou a vez de Augusto Aras, por quem o capitão teve, como é de seu feitio, um “amor à primeira vista”. Conservador, católico praticante e ideologicamente alinhado com Bolsonaro, Aras não integrava a lista tríplice para indicação ao cargo; chegou ao topo da estrutura do Ministério Público pelas mãos da ninhada 01, 02 e 03 e do ex-deputado federal Alberto Fraga, militar como o capitão, condenado por manter armas de fogo proibidas e corrupção, que fez a aproximação entre os dois. Tomou posse em 26 de setembro de 2019. 

Um ano depois, seu balanço era pra’ lá de minguado. Entre manifestações encaminhadas ao STF e medidas adotadas pela própria PGR, a Procuradoria se alinhou ao governo em mais de 30 vezes. Ficou na contramão em apenas uma oportunidade, em que Aras apresentou uma ação constitucional contra ato do presidente Jair Bolsonaro. 

Isso ocorreu quando o Executivo editou a medida provisória que instituiu o contrato de trabalho Verde e Amarelo. A Procuradoria pediu a invalidação de dois trechos do texto assinado por Bolsonaro. Essa foi a única iniciativa do procurador de provocar o Supremo contra uma decisão do presidente da República.

Se Bolsonaro fosse um presidente “normal” talvez estivesse de bom tamanho, mas não é. Comete crimes, viola a Constituição quase que diariamente, diante do silêncio doloso de Augusto Aras, incentivado pela “promessa” de nomeação para o STF. 

O capitão deve sua sobrevivência no cargo em grande parte ao Procurador-geral da República, a quem faltam algumas características básicas para o exercício da função: independência, honestidade, alto saber jurídico, respeito à Constituição. À essas poder-se-ia acrescentar a falta de uma qualidade que ele alardeia possuir: coragem. 

Em raríssimas ocasiões Aras agiu como chefe do Ministério Público Federal: 

1) promoveu uma ofensiva contra a militância bolsonarista que pedia o fechamento do Congresso e do Supremo.

2) pediu abertura de inquérito para investigar os responsáveis pelos atos;

3) defendeu o inquérito das fake news, que apura a disseminação de notícias falsas e ameaças contra integrantes da Corte Suprema;

4) solicitou a abertura de inquérito para apurar a veracidade das acusações feitas por Sergio Moro contra o chefe do Executivo ao pedir demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Mas inclusive nessas ocasiões, sempre que pode, posicionou-se a favor do Executivo. Foi capaz de contorcionismos espetaculares para livrar o seu chefe e denunciar seus adversários. 

Entre as violações flagrantes à lei máxima, que poderiam – ou melhor, deveriam – ter sido levadas ao STF por Aras estão: censura, apoio a manifestações antidemocráticas, homofobia, ataques à população indígena, ameaça a procuradores, manifestação contra decisões do Supremo, interferência na Polícia Federal, defesa da ditadura, exoneração fiscal do Ibama, crimes contra a saúde pública.  

Com relação à atitude de Augusto Aras, cego, surdo e mudo face à condução da crise sanitária pelo Executivo, o procurador  porta uma imensa responsabilidade. Seus atos mais recentes mostram cumplicidade com o genocida (termo utilizado em ao menos duas denúncias contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional) no poder. 

Sua recente nota atribuindo ao Congresso o papel de analisar “eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República” durante o enfrentamento à pandemia de covid-19 é jurídica e politicamente inaceitável. 

Ministros do STF qualificaram a nota de “desastrosa”, mas ninguém manifestou surpresa, afinal ficou evidente que o objetivo de Aras é, como sempre foi, preservar o presidente Jair Bolsonaro e no caso presente o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

Cabe ao procurador-geral da República conduzir qualquer investigação criminal sobre presidentes e ministros. E está evidente que o capitão e o sargento Garcia cometeram crimes previstos nos artigos 268, 269, 283,  285, 258, 131 do Código Penal. 

Só que desta vez Augusto Aras foi além. Ao defender seu protegido, fez como ele: atacou a democracia, o Estado de Direito. O procurador agiu exatamente como o seu patrão ao declarar que as Forças Armadas, e não a Constituição Federal, decidem se o país viverá uma democracia ou retornará à ditadura.

 A ardilosa nota divulgada por Aras, em 19 de janeiro, apontou risco de o atual estado de calamidade progredir para o estado de defesa, que previsto na Constituição pode ser decretado por presidentes a fim de preservar ou restabelecer “a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. 

O recurso ao estado de defesa está sujeito à aprovação do Congresso em dez dias e permite ao presidente restringir direitos da população: direito de reunião, de ir e vir, de trocar ideias e criticar, sigilo de correspondência, sigilo de comunicação telegráfica e telefônica.

Claro portanto que tais medidas não têm nenhuma relação com o combate à pandemia. O objetivo de Aras é advertir para o risco de ruptura democrática. Ele não apenas não é contra como aponta o caminho das pedras. 

Seria um caso único nos países democráticos face à pandemia. Outros governantes populistas de extrema-direita, como Viktor Orbán, na Hungria, tentaram amordaçar a população, mas foram obrigados a voltar atrás. 

Sete dos dez subprocuradores-gerais da República não hesitaram em destacar a atitude do chefe: “Referida nota parece não considerar a atribuição para a persecução penal de crimes comuns e de responsabilidade da competência do Supremo Tribunal Federal (…), tratando-se, portanto, de função constitucionalmente conferida ao Procurador-Geral da República, cujo cargo é dotado de independência funcional”.

O ministro do STF Marco Aurélio de Mello e o ex-ministro Celso Velloso também já disseram que a medida não caberia no atual contexto do país.

Está claro que, no tratamento da pandemia, o capitão e seu sargento  cometeram crimes, tanto de responsabilidade como de direito comum.  E que, como assinalou o Conselho Superior do Ministério Público,  “o Procurador-Geral da República, precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal, devendo adotar as necessárias medidas investigativas a seu cargo – independentemente de “inquérito epidemiológico e sanitário” na esfera do próprio Órgão cuja eficácia ora está publicamente posta em xeque -, e sem excluir previamente, antes de qualquer apuração, as autoridades que respondem perante o Supremo Tribunal Federal, por eventuais crimes comuns ou de responsabilidade”. 

Em bom português, pela enésima vez Augusto Aras não cumpre sua função e pior, penetra em uma zona cinzenta – a antevisão do “estado de defesa” –  que além de não se justificar pode ser considerada incitação ao golpe. O procurador-geral atuou contra a defesa do estado democrático de direito. Agora vem aí, tal Poncio Pilatos, lavando as mãos, argumentando que, se crimes houveram, foram de responsabilidade, de competência exclusiva do Legislativo. 

Augusto Aras mente de forma descarada porque é servil, só obedece os interesses próprios, e por ideologia. É um adepto da “democracia relativa” tão cara aos militares da ditadura. 

Em dezembro de 2018, declarou à Tribuna da Bahia: “Podemos ter no governo Bolsonaro uma democracia militar”… “o fato de termos um governo em que, pelo menos, metade do ministério tem militares na chefia revela uma dificuldade para o fisiologismo”.

Desta maneira, Augusto Aras ganhou o cargo e pode até vir a ser premiado com o STF, mas sua ação e inação minimizam os desfeitos (graves) de Brindeiro e Janot nesse circo de horrores, representam um retrocesso institucional, violam a Constituição e contribuem para a morte de dezenas de milhares de brasileiros, vítimas da ausência de política sanitária de um sádico que, por culpa sua (do PGR), não responde pelos crimes que comete. 

Aras e Bolsonaro se valem. São irmãos siameses unidos pelo ódio ao Estado Democrático de Direito.


Milton Blay

Formado em Direito e Jornalismo, com master no Centre d’Etudes Diplomatiques et Stratégiques, mestrado em Economia e doutorado em Política pela Université Paris 3, Milton Blay vive em Paris desde 1978. Integrou a equipe da Jovem Pan que ganhou o prêmio Esso de melhor programa radiofônico, nos anos 1970. Foi prêmio Valmet de jornalismo econômico com matéria sobre os boias-frias, publicada no Jornal da Tarde. Como correspondente baseado na França, trabalhou na revista Visão, na Folha de S.Paulo, nas rádios Capital, Excelsior (futura CBN), Eldorado, Bandeirantes e TV Democracia. Por 15 anos foi redator-chefe da Radio France Internationale, assim como presidente da Associação da Imprensa Latino-Americana na França. É autor dos livros Direto de Paris, A Europa Hipnotizada e coautor de O Brasil no Contexto:1987-2017.

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