Resistência já não é escolha: é sobrevivência

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PAULO MOREIRA LEITE

Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos Resistência já não é escolha: é sobrevivência

13 de Novembro de 2018

A coreografia atual de Jair Bolsonaro não deve confundir ninguém. Embora o novo presidente tenha recebido o voto de 39% dos eleitores, a partir de 1 de janeiro de 2019  o comando do Estado brasileiro estará nas mãos de uma articulação política que jamais escondeu sua falta de compromisso com a democracia.

Parece razoável prever que, ao longo de um mandato previsto para durar quatro anos, o governo Bolsonaro tentará valer-se de todos os meios a seu alcance — legais e paralegais — para percorrer um caminho clássico. Construir uma posição de força e evitar de qualquer maneira um possível retorno pelas urnas do bloco político que venceu as quatro eleições presidenciais anteriores, e deixou a campanha na posição de única opção viável — em novembro de 2018, não custa sublinhar — a um programa de extrema-direita que até agora nunca havia recebido  o repaldo das urnas brasileiras.

Embora se diga convencido de que o país possui força institucional para enfrentar e vencer iniciativas de natureza golpista, o historiador José Murilo Carvalho, com estudos importantes sobre as Forças Armadas brasileiras, enxerga o governo Bolsonaro nos seguintes termos:

“Serão anos difíceis e haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas que representem retrocesso democrático. A principal tarefa da oposição será combater sem tréguas essas tentativas. Já será um ganho se chegarmos ao final do primeiro mandato com instituições intatas e os valores preservados. Se conseguirmos, nossa democracia terá passado num teste difícil e se fortalecido. Se não, não.” (Folha de S. Paulo, 30/10/2018).

 

A historiadora francesa Maud Chirio, autora de A Política nos Quartéis, que se especializou em pesquisas sobre a direita brasileira, está convencida de que toda aposta numa conversão democrática de Bolsonaro não passa de uma tentativa de autoengano, incompatível com o personagem real. Ela recorda que Bolsonaro representa uma articulação civil-militar que nunca se limitou a simplesmente fazer oposição aos sucessivos governos constituídos entre 1985 até 2018, mas contestava de frente, de forma global, o regime democrático instituído nos últimos 30 anos. “Bolsonaro representa um segmento que sempre rejeitou a República decorrente da Constituição de 1988 e sua apologia da diversidade étnica e religiosa e do pluralismo, ” diz. (Ilustríssima, 4/11/2018). Na mesma entrevista ela prevê medidas  drásticas logo depois da posse: “MST e o MTST serão declarados organizações terroristas. No começo de fevereiro, o PT vai ser interditado. Haverá um expurgo na administração pública, que já está em preparação. Só não vê quem não quer”.

 

A vitoria do bloco político-militar que apoia Bolsonaro se fez sobre a ruína do sistema político construído para abrigar a democracia brasileira de 1988 para cá. Num  ambiente regressivo do ponto de vista da democracia, o injusto encarceramento de Lula em função de um triplex que nunca foi seu é um elemento que estrutura toda paisagem política. Não custa lembrar que  pode se mostrar ainda mais hostil aos direitos da maioria de brasileiros e brasileiras em  caso de  uma segunda condenação, tão ou mais frágil do que a primeira, em função do sítio de Atibaia.

O grande final da eleição de Bolsonaro constitui a presença de Sérgio Moro no ministério. É uma tentativa de fechar uma situação inaceitável do ponto de vista do Estado Democrático de Direito e naturalizar um outro país — o Brasil sem Lula. Como a campanha de 2018 acaba de demonstrar, a exclusão de Lula — principal responsável pela série inédita de quatro vitórias eleitorais consecutivas de um partido de esquerda  em eleições brasileiras — é percebida pelo andar superior da  pirâmide social como o principal fator de uma estabilidade política favorável a suas conveniências e interesses que desde 2002 não tem maior poder de sedução junto ao povão. Se o tom espetaculoso das operações contra corrupção fez a glória de Sérgio Moro junto a uma grande parcela de eleitores, a capacidade de investigar, perseguir e manter Lula fora de combate lhe dá autoridade única e intransferível no interior aos 1%.

Se o guru econômico Paulo Guedes conquista as platéias presentes com as ofertas relativas ao patrimônio público, Moro é indispensável para a sobrevivência do governo Bolsonaro  em sentido amplo, por quem já prendeu — e por quem poderá vir a prender. Desde já, as pesquisas eleitorais  confirmam que foi ele — mais do que Bolsonaro — quem decidiu a parada, ao eliminar o inimigo principal antes que pudesse chegar às urnas. O resto, relativamente, estava bem mais fácil.

“O antipetismo radical e o conservadorismo moralista colocaram o capitão e o magistrado no mesmo barco,” observa o professor Fernando Limongi (Valor Econômico, 10, 11 e 12/11/2018). Ele recorda  que Moro já deixou claro seu apoio às  principais medidas de endurecimento da atuação policial, inclusive “ao   relaxamento do excludente de ilicitude”, mudança que garante a impede a investigação de crimes violentos — inclusive homicídios — cometidos por agentes policiais no exercício da função. “Na chegada, mostrando disposição para jogar para o time, perdoou Onyx Lorenzoni pelas propinas recebidas,” observou Limongi, para acrescentar ainda: “Com certeza, (o deputado) não será o único a receber o tratamento complacente, reservado aos amigos que, imediatamente, deixam de ser brasileiros como os demais”.

A  dificuldade para discutir o futuro brasileiro depois de 1 de janeiro de 2019 é que ninguém pode prever o elemento químico fundamental da cena política — o grau de resistência dos trabalhadores e da população explorada para enfrentar  ameaças e ataques a direitos, que incluem — agora ou depois — a reforma trabalhista, o enfraquecimento da saúde e da educação como serviços públicos, a repressão à liberdade acadêmica, o desmanche dos sindicatos e a informalização absoluta das relações de trabalho. Este é o ponto de passagem obrigatório no novo período.

Governos que tem um DNA semelhante ao de Bolsonaro costumam repetir um mesmo percurso em direção a regimes que se tornaram conhecidas como “ditaduras híbridas”. Isso porque permitem a convivência de determinadas franquias democráticas com a preservação de um poder real — acima da soberania popular — para impor a ordem e reprimir a população. Foi assim no Paraguai após o golpe que derrubou Fernando Lugo, trazendo de volta uma ditadura oligárquica e anti-popular. Nove anos depois do golpe que retirou Manoel Zelaya — ainda de pijamas — do Palácio presidencial de Tegucigalpa, uma manipulação escancarada impediu a vitória de uma frente eleitoral  de oposição e o continuísmo do candidato do grupo golpista. Com muitas variações mas semelhanças em pontos essenciais, a história se repete na Turquia, na Hungria, na Polônia de nossos dias.

Quatro décadas depois de ter iniciado, na segunda metade dos anos 1970,  a luta social que desbravou o caminho para o mais prolongado período de liberdades públicas de nossa história, Luiz Inácio Lula da Silva permanece, mesmo na prisão, como o  fio condutor de dois momentos distintos. Vem daí a importância da luta por sua liberdade.

Mas o país vive outra época, com outras circunstâncias e novos personagens.

Há 40 anos, o país lutava para sair de uma ditadura. Hoje, a tarefa é impedir que uma democracia enfraquecida por sucessivas atos de exceção, se transforme num paisagem arruinada.

Como se fez em outras épocas, a prioridade imediata envolve a necessidade de organizar defesa dos trabalhadores e da população explorada para enfrentar ataques já em curso, contra conquistas materiais e direitos políticos.

Mais que uma opção, a resistência é uma questão de sobrevivência.

Alguma dúvida?

 

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