Povo heroico?

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(Foto: Miguel Paiva)

Povo heroico?

“A História é sempre contada pelos vencedores, pela classe dominante, pela elite. Os perdedores, os oprimidos e o povo em geral servem de combustível para essa queimação de filme que é a História Oficial dos países. Aqui no Brasil é igual”, escreve Miguel Paiva, do Jornalistas pela Democracia

6 de setembro de 2020

Por Miguel Paiva, do Jornalistas pela Democracia

Apesar da Independência do Brasil ter sido resultado de uma pressão da Inglaterra, D. Pedro I é uma figura que consegue escapar do crivo cruel da História. Ele teve uma vida bastante honesta para quem foi imperador do Brasil. Se recusou a obedecer à Corte, gostava de uma boa farra e nunca foi chegado a uma carreira militar. Seu filho, D. Pedro II, melhor ainda. Esse era boa gente mesmo. Por isso talvez a História o deixe meio de fora. 

O problema é justamente esse. A História é sempre contada pelos vencedores, pela classe dominante, pela elite. Os perdedores, os oprimidos e o povo em geral servem de combustível para essa queimação de filme que é a História Oficial dos países. Aqui no Brasil é igual. Temos algumas histórias paralelas. A História do Povo Negro, a História das revoltas populares, a História dos Escravos, dos Quilombos e a História do Trabalhadores que se revoltaram contra o regime. 

Hoje alguma coisa foi resgatada e a história mal contada, recontada. O secretário de Cultura Mário Frias acaba de gravar um vídeo cultuando as figuras clássicas da nossa história fazendo um paralelo com as palavras do Hino Nacional usando sem autorização uma canção de um compositor estrangeiro que já reclamou e comete erros crassos. Parece que até um Rei da Bélgica foi homenageado erroneamente no vídeo. Mas expressões como o Brado RetumbantePovo Heroico, e por aí vai, batem num vazio social do tamanho da ignorância deles sobre a História.

Esses heróis todos, forjados na luta de classes, que entraram para as páginas dos livros à custa de sangue das classe populares e de mentiras contadas na corte hoje estão sendo literalmente derrubados mundo afora. Estátuas que acabam sendo o destino final desses heróis hoje não mais resistem. Vão para o fundo dos rios ou para o lixo da História no entulho autoritário mais justo que existe. Precisamos mostrar para essa gente que valorizar a nossa História não é cultivar figuras ou batalhas sanguinolentas que apenas mantiveram a elite no poder. A História precisa ser contada pelo povo. 

Tivemos aqui algumas tentativas de incluir isso nos currículos escolares. O grandes historiadores tentaram contar a História do Brasil de um ponto de vista crítico e não bajulando o poder. A História, segundo a elite,  é feita de ganhadores e perdedores e não de fatos importantes que narram a trajetória daquele povo, naquele país dentro daquele contexto mundial. Como uma guerra mal contada, a História se alimenta de feitos deploráveis onde a força e o dinheiro acabam escondendo os verdadeiros motivos daqueles fatos. 

Costuma-se perguntar porque todos os bons professores de história são de esquerda? Porque a História contada pela esquerda democrática vai sempre em cima do que o povo viveu, sentiu, sofreu e conquistou. Tem sido pouco de fato, mas o suficiente para que uma nova bibliografia da História exista e se contraponha a essa coleção de factoides mal intencionados como o vídeo do Secretário de Cultura. 

No dia 7 de setembro é preciso contar o que existia por detrás daqueles fatos. A corte sempre foi elitista e o povo, ainda escravo, servia para enriquecer mais ainda os poderosos. A Inglaterra, parceira comercial do Brasil e de Portugal queria negociar diretamente com D. Pedro. Portugal atrapalhava, pressionava o Príncipe Regente que acabou não resistindo e se rebelando apoiado pelos ingleses, os novos comerciantes do mundo. As discussões políticas eram travadas nos gabinetes e quando um fato histórico aconteceu do lado de fora, como o grito do Ipiranga acabou virando imagem famosa, quadro do Pedro Américo e símbolo da nossa História. 

Que um dia consigamos ouvir e contar a verdadeira história do povo brasileiro, o que vive nas ruas, nas favelas, nos quilombos e nas florestas. Com eles está a verdadeira possibilidade de independência em relação a um regime que desde sempre conta a História Oficial que interessa. Nem os bois mais dormem com ela. Nós ainda dormimos e o governo se aproveita. Não custa terminar com a frase de Bertold Brecht: “Infeliz do país que precisa de heróis”.

PS- Ao terminar este artigo soube que a Justiça do Rio de Janeiro ordenou a soltura do jovem músico negro Luiz Carlos Justino, de 22 anos, violoncelista da Orquestra de Cordas da Grota, preso na última quarta-feira, em Niterói, por ser negro, certamente. Naturalmente essa notícia se liga com o que foi dito acima.

Miguel Paiva Cartunista, ilustrador, diretor de arte, roteirista e criador da Radical Chic e Gatão de Meia Idade

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