Moraes Moreira, sopro de delicadeza

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Moraes Moreira (Foto: Rvonkruger Fotografia)

Gustavo Conde

Gustavo Conde é linguista.

Moraes Moreira, sopro de delicadeza

“Moraes não está autorizado a ‘morrer de uma vez’. Nós não temos estrutura na percepção do sensível para decretar ‘morreu Moraes Moreira’. Pelo menos, não aqueles que vivem e respeitam a arte”, diz o colunista Gustavo Conde sobre a morte do compositor baiano

13 de abril de 2020, 14:50 h Atualizado em 13 de abril de 2020, 15:58

Soube há pouco da morte de Moraes Moreira. Tomo-a triste e contrariado. Não costumo aceitar a morte de ninguém facilmente – e para quem já vai assistindo a morte institucional da cultura brasileira aos poucos é uma notícia-alerta.

Quando algumas pessoas – que dedicaram suas vidas para construir obras delicadas, na espontaneidade da respiração e da fala (as músicas de Moraes) – se despedem, suas despedidas também demandam tempo.

Quem viveu ‘o tempo’, também morre ‘o tempo’.

Se Guimarães Rosa disse que as pessoas não morrem, mas ficam encantadas, eu emendaria: “as pessoas não morrem, apenas desaceleram”.

Moraes não está autorizado a ‘morrer de uma vez’. Nós não temos estrutura na percepção do sensível para decretar ‘morreu Moraes Moreira’. Pelo menos, não aqueles que vivem e respeitam a arte.

Moraes ‘começou a nos deixar’, esse é o enunciado – que se complementa: ‘para permanecer a nos encantar com sua obra e sua humanidade’.

A obra de Moraes Moreira é monumental. Sua simplicidade e delicadeza são são os valores que significam – e desaceleram – essa suposta travessia que, na verdade, é um recomeço.

Vi Moraes Moreira “ao vivo” pela última vez há menos de um ano, no show da banda A Cor do Som no Sesc Pinheiros-SP. Ele ‘abria’ o show só ao violão, reverenciado por Armandinho, Mú, Dadi, Ary Dias e Gustavo Schroeter.

O tempo para Moraes havia chegado, como chega para todos nós, impregnando-nos de desacelerações e sutilezas. Sua paixão pela música e pelos palcos, no entanto, era de tal ordem rejuvenescida e sincera que foi uma de suas performances mais emocionantes.

Ele habitava suas próprias canções como quem redescobre a própria casa, na quarentena que manifesta toda a extensão da nossa humanidade.

Moraes construiu suas canções-casa e as habitou delicadamente, convidando ainda os maiores intérpretes da música brasileira para cafés, jantares e saraus meta-musicais (a música dentro da música).

Ele estava em quarentena, como todos nós que nos amamos uns aos outros – e que ‘temos uma casa’, nesse Brasil desigual.

De sua quarentena, ele produzia sem parar, como sói acontecer com os artistas que criam dicções monumentais – e ficam impossibilitados de simplesmente se apartarem do movimento espontâneo de ‘criar’.

Como todos nós, Moraes estava apreensivo com a epidemia que tomou conta do planeta e que alguns chamam de ‘pandemia’.

Deixo com vocês seu último cordel, em que ele relata com devastadora sensibilidade nossa frágil condição diante de um inimigo invisível, atravessado por algozes muito visíveis instalados em nosso horizonte político.

Moraes Moreira, presente.

“Quarentena (Moraes Moreira)

Eu temo o coronavirus
E zelo por minha vida
Mas tenho medo de tiros
Também de bala perdida,
A nossa fé é vacina
O professor que me ensina
Será minha própria lida

Assombra-me a Pandemia
Que agora domina o mundo
Mas tenho uma garantia
Não sou nenhum vagabundo,
Porque todo cidadão
Merece mais atenção
O sentimento é profundo

Eu não queria essa praga
Que não é mais do Egito
Não quero que ela traga
O mal que sempre eu evito,
Os males não são eternos
Pois os recursos modernos
Estão aí, acredito

De quem será esse lucro
Ou mesmo a teoria?
Detesto falar de estrupo
Eu gosto é de poesia,
Mas creio na consciência
E digo não violência
Toda noite e todo dia

Eu tenho medo do excesso
Que seja em qualquer sentido
Mas também do retrocesso
Que por aí escondido,
As vezes é o que notamos
Passar o que já passamos
Jamais será esquecido

Até aceito a Policia
Mas quando muda de letra
E se transforma em milícia
Odeio essa mutreta,
Pra combater o que alarma
Só tenho mesmo uma arma
Que é a minha caneta

Com tanta coisa inda cismo…
Estão na ordem do dia
Eu digo não ao machismo
Também a misoginia,
Tem outros que eu não aceito
É o tal do preconceito
E as sombras da hipocrisia

As coisas já foram postas
Mas prevalecem os reles
Queremos sim ter respostas
Sobre as nossas Marielles,
Em meio a um mundo efêmero
Não é só questão de gênero
Nem de homens ou mulheres

O que vale é o ser humano
E sua dignidade
Vivemos num mundo insano
Queremos mais liberdade,
Pra que tudo isso mude
Certeza, ninguém se ilude
Não Tem tempo, nem idade.”

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