“Aprovada para assegurar proteção a Flávio Bolsonaro, a manutenção do juiz de garantias no pacote anti-crime lembra Lei Fleury, de 1973: criada para proteger o grande carrasco da ditadura, funcionou como um passo positivo na defesa das garantias individuais” escreve PauloMoreira Leite, do Jornalistas pela Democracia.
Sabemos que as contradições mais surpreendentes podem funcionar como grandes
motores da evolução humana. O último exemplo ocorreu no Planalto, quando Jair
Bolsonaro preservou a figura do juiz de garantias, incluída pela Câmara de
Deputados no projeto anti-crime de SérgioMoro. Bolsonaro deu de ombros para as
queixas em voz alta de Sérgio Moro e outros auxiliares, o que só confirma a
gravidade das descobertas produzidas pelas investigações sobre o filho Flávio,
o amigão Queiroz e a turma das milícias. Por uma dessas contradições próprias
da vida pública, em determinadas circunstâncias mesmo os ditadores mais
empedernidos são obrigados a fazer concessões impensáveis em situações de
normalidade .
Em 1973, em pleno governo Médici — fase mais radical do regime, sempre
elogiada por Bolsonaro –, a ditadura produziu a lei 5.941/73, que
contraditoriamente marcou uma evolução positiva do Estado de Direito em nosso
país. Mais conhecida como Lei Fleury, seu primeiro beneficiário foi ele mesmo:
o delegado SérgioParanhos Fleury, do Esquadrão da Morte que executava
criminosos comuns e do DOPS onde militantes de esquerda eram torturados e
mortos durante o regime militar. Aprovada numa manobra de urgência pelo Congresso,
então uma casa de despachos do Planalto, a lei salvou o delegado-símbolo da
ditadura de uma inevitável sentença de prisão, graças ao trabalho persistente
do procurador Hélio Bicudo.
Na época, mesmo os adversários mais duros do regime, os advogados de direitos
humanos e militantes da luta democrática, reconheceram os méritos da lei 5.941.
Antes dela, numa legislação sob medida para atingir os réus mais pobres,
bastava um juiz reconhecer a materialidade das provas contra qualquer acusado
em crimes contra a vida para que fosse colocado em prisão preventiva, de onde
não sairia antes de enfrentar o júri popular.
Depois disso, em caso de condenação, passava a cumprir pena imediatamente, sem
direito a recurso em liberdade. A partir da lei, réus primários, com bons
antecedentes, puderam aguardar fora da prisão pelo julgamento de recurso em
segunda instância. Rompendo uma tradição autoritária de décadas, surgia aí o
embrião daquele ritual que, quatro décadas mais tarde, se tornaria um elemento
fundamental de nossa conjuntura — o trânsito em julgado, ultima garantia
contra magistrados parciais e procuradores da justiça-espetáculo.
Se os benefícios do juiz de garantia não devem ser diminuídos também não devem
ser exagerados. Num país onde a formação da maioria do Judiciário encontra-se
dominada pelo espírito justiceiro é provável que uma proposta destinada a
funcionar como ponto de equilíbrio contra super-juizes seja alvo de várias
tentativas de enfraquecimento e neutralização. Não custar recordar momentos
antológicos da Vaza Jato para entender como esse universo é capaz de funcionar
na vida real.
Ficando no caso do momento. Quando e se as investigações sobre a família
Bolsonaro se transformarem num processo contra 01, os discretos fios que
conectam o judiciário aos palácios de governo podem ser acionados para proteger
o filho do presidente.
Um fato não pode ser negado, contudo. Com a criação do juiz de garantia, um
magistrado disposto a defender a Constituição e preservar as cláusulas pétreas
que estruturam nossa democracia terá um posto de trabalho para atuar.
Alguma dúvida?