De uma cidadã livre a um cidadão preso político

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Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em São Bernardo do Campo, no último dia 09. / Ricardo Stucket/Divulgação

De uma cidadã livre a um cidadão preso político

Política & Direito19 de Novembro de 2019

Sua “condenação” foi construída por um sistema jurídico patológico

Marília Lomanto Veloso*

“Por 580 dias, me preparei espiritualmente para não odiar, não ter sede de vingança, não odiar os meus torturadores” Lula

Presidente Lula,

“Quando nas praças s’eleva, do povo a sublime voz”. Canta o poeta que a praça é o antro onde a liberdade cria águias em seu calor. Castro Alves deixa um legado abolicionista de assombrosa atualidade. Esgrimiu o verso como instrumento de denúncia e de gritos de liberdade.

Lembrar o Poeta dos Escravos nesse momento em que a voz das praças explode ao som de Lula Livre resgata a indignação contra o arbítrio da segregação de Luiz Inácio Lula da Silva, da subtração insana e reprovável de seu direito a conclamar o princípio universal do “estado” de inocência, do sequestro de sua fala, na pretensão inumana de silenciar suas ideias. Você é um preso político. A ausência de razões jurídicas para a permanência desse odioso mecanismo de resposta penal contra a liberdade, valida a certeza de que se trata de decisão resultante de um processo vil e disforme que afronta princípios e garantias cravados na Constituição Federal de 1988, sobre a qual o Poder Judiciário, o Ministério Público, o capital especulativo e a mídia hegemônica produzem rupturas profundas e letais para a vitalidade do Estado Democrático de Direito.

Sua prisão não deixou você disputar as eleições presidenciais para retomar o projeto de transformação social que começou em 2002 e foi violentamente interrompido pela destituição da presidenta Dilma Rousseff. Todo mundo sabe que sua “condenação” foi construída por um sistema jurídico patológico e em afrontoso surto de ativismo político, ideológico e partidário. Você é refém de um poder togado que tentou roubar, além de sua liberdade, seu direito de ser pessoa, emudecendo sua voz e destituindo sua condição de sujeito histórico singular. Algumas togas você mesmo elevou ao Olimpo e talvez agora queiram espantar o incômodo de estar ali por escolha de um nordestino, retirante e presidente da República.

Querido presidente Lula, agora que libertaram você, vamos “bater um papo” sem as rédeas do português deslumbrado, das regras da linguagem escravizada, submissa ao que as elites acadêmicas e intelectuais ordenam. Vamos falar o dialeto nordestino. Você é realmente um grande homem, um sujeito “porreta”, a mais fiel tradução do vigor político, da energia inspiradora, da rebeldia insuperável que se projeta para um legado que marca a história política, humana, social desse país.

Você nasceu e vai morrer “cabra da peste”, doutor pela universidade da vida, com mais título do que muitos “abestados” de peito de pombo, que vivem acumulando metros de currículo lattes, mas não alcançam um dedinho mínimo de sua natural sabedoria, de sua inteligência rara, de sua genialidade e sobretudo de sua excepcional aptidão para seduzir e encantar multidões dessa terra e de outros recantos desse mundão que se espanta diante da bagaceira política e jurídica enlameando nosso país.

Sabe, meu presidente, você transformou essa republiqueta de escravistas em um espaço de idoneidade política diante do mundo “civilizado”. Ergueu nossa moral, promoveu igualdade, incluiu os pobres na categoria de pessoas, limpou o nome do Brasil do Mapa da Fome, empoderou o povo negro, deu voz a quilombos e a nações indígenas, demoliu os muros das universidades para filharada de trabalhadores entrarem, alargou as passarelas dos shoppings e dos aeroportos, por onde só andavam saltos altos, odores franceses, marcas famosas e abriu alas para o desfile de turbantes coloridos, cabelos encaracolados, cheiros misturados de gente, de humanidades, de diversidade de sexo, de gênero, de raça, de cores, de lugares e de “classes”. Você repactuou processos de integração dos sujeitos invisíveis no protagonismo de suas histórias.

E tanto fez que incomodou os ricos, removeu a perpetuidade das elites, botou pra correr a especulação do capital nacional e estrangeiro. Também deu asa a cobras, liberdade plena e ilimitada aos meios de comunicação e brilho de estrelas a instituições que terminaram por se organizar em torno de um golpe que estabeleceu no país um modelo de estado de exceção, trazendo de volta, em pleno século XXI, práticas da Santa Inquisição, do nefasto nazismo e de um indiscutível fascismo, todos juntos e cuspidos escancaradamente na cara dos telespectadores, dos usuários de mídias eletrônicas, dos ouvintes das rádios que disputam, ávida e ferozmente, as charlatanices criadas por profissionais da comunicação a serviço do terror político ao qual estamos submetidos, mas nunca, submissos.

Quem legitima essa esbórnia é o Poder Judiciário, quando deveria ser o guardião da Carta Política. Quem se omite diante dessa sujeira é o Ministério Público, que se amesquinha na minúscula cova de agente do rei. O trabalho de capitão do mato é da Polícia Federal, em suas espalhafatosas e burlescas operações. Quem divulga os fatos e forma a opinião pública é a mídia hegemônica, dona absoluta das narrativas que traduz a seu prazer, induzindo ao erro pessoas desinformadas e medrosas sobre seu próprio destino.

Você honra as vidas que foram sacrificadas na oposição à ordem posta e na ousadia de sonhar um outro mundo. Sujeitos de sua própria história. Esse sonho tem luzes, imagens reais de liberdades e direitos para a classe trabalhadora, que sai das sombras da opressão para cintilar protagonismos.

Mas também tem sangue, tem estilhaços de corpos que tombaram ao longo das trincheiras por onde escoaram essas lutas. A ação covarde de quem oprime é uma provocação para quem sonha alargar os horizontes de esperança em uma sociedade melhor, mais plena de direito a ter direitos. Você é um desafio para essa simulação de “organização criminosa” vestida de aparato de Estado. Você é o conflito que essa “legalidade instituída” produziu e insiste em satanizar e esquartejar visceralmente, esvair gota por gota do propósito de cevar a humanidade que você transborda.

O silêncio que o poder lhe impôs se ressignifica em brados que o universo congemina e faz ressoar nos espaços nos quais a utopia anda de braços com a esperança que pulsa em cada um e cada uma de nós – os que reconhecem em Luís Inácio Lula da Silva a força viva que nunca se esvai, a bandeira que nunca se empresta “pra cobrir tanta infâmia e cobardia” que surge para expressar o “estandarte que encerra promessas divinas de esperança” para nosso povo que vive o constante e inquieto movimento de pensar em Lula Livre, pleno de vida política.

Você é muito maior que a mediocridade dos seus verdugos, pobres personagens de uma narrativa bastarda que atravessa a história como um enxovalho para um passado que sangrou as conquistas civilizatórias que o presente, travestido de legalidade, ultraja e usurpa das futuras gerações.

*Marília Lomanto Veloso é cidadã, mulher, brasileira, nordestina, baiana, advogada.

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