Livro-reportagem investiga a fortuna repentina de FHC após Presidência

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MINO CARTA   29 DE JULHO DE 2019

Alceu Luís Castilho volta à carga com seu irretorquível ato de acusação contra o tucano. Reportagem inicial saiu em CartaCapital

Todo jornalista, dizia um dos mestres, há de ter a alma de repórter. De fato, batem asas no peito de alguns, movidos pelo impulso de buscar a verdade dos fatos e iluminar a consciência do leitor ou dos ouvintes. Alceu Luís Castilho é um destes profissionais midiáticos abençoados pela importância da tarefa, ou da missão, se preferirem, cumprida à risca. Jornalista autêntico como pretendia aquele mestre. E a missão é decifrar um dos mais vistosos hipócritas nativos, qual fosse uma cariátide dos palácios genoveses capaz de pisar o solo comum.

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Este enredo começa um ano atrás, julho de 2018, por uma magistral reportagem de capa assinada por Alceu e publicada por CartaCapital. O protagonista é um professor universitário aposentado que se tornou presidente da República e amealhou uma fortuna além de conspícua: terras férteis para a cana-de-açúcar, gado de raça e cavalos resignados, de apartamentos de alentado espaço no exterior e no País, uma fazenda habilitada a se apresentar como grife arquitetônica. A comparação com Lula, processado e condenado sem provas por obra de uma tramoia (nem posso dizer jurídica) que lhe atribui a propriedade de um triplex de 200 metros quadrados em uma praia de farofeiros, onde FHC não passaria nem mesmo poucas horas, obra de ficção maligna, como demonstram as recentes revelações do site The Intercept.

Já na reportagem, Alceu perguntava-se como se deu que a transparente abastança do ex-presidente tucano não tenha despertado, em momento algum, a mais pálida sombra de suspeita. Cadê a corte suprema que permitiu a ofensa fatal à Justiça vendada? Pois FHC, além de ser cotado, não se sabe por quem, para príncipe dos sociólogos (Paulo Henrique Amorim o definia como “Farol de Alexandria”), tornou-se, graças às estripulias tucanas, o príncipe da casa-grande.

Não é por acaso que ele tenha recomendado “esqueçam o que escrevi”, a bem de um perfeito encaixe à sombra do reacionarismo mais abjeto. Um ano depois, Alceu volta à carga com um livro, O Protegido – Por Que o País Ignora as Terras de FHC. Trata-se de um aprofundamento das informações da reportagem de capa, algo assim como arredondar as provas sobre as dimensões e o alcance do império fernandista. Complemento rico, diria mesmo definitivo. Em um país democrático e civilizado, FHC estaria riscado de vez do mapa político e moral. Diga-se que ele teve dois guias de certa forma incomparáveis no caminho da riqueza, dois experts na colheita de bem disfarçados golpes de mão onde se apresentava a oportunidade de ouro, Serjão Motta e Jovelino Mineiro. Este casado com Carmo, filha de Roberto de Abreu Sodré, a valorizar a linhagem. Neste trajeto, comparecem pecuaristas, banqueiros e empreiteiros, sempre prontos a secundar os diversos projetos de grandeza do seu herói protegido.

O afinadíssimo Alceu de um ano atrás e o de hoje fecham o círculo de maneira irretocável, como é praxe para um jornalista com alma de repórter, mas a pergunta fica ainda sem resposta: por que o ex-presidente tucano, aquele mesmo que quebrou o País três vezes e comprou votos no Congresso para abocanhar a reeleição, não desperta suspeitas em relação a um poder econômico aparentemente inalcançável para um professor universitário aposentado? A resposta está nas entrelinhas do livro: porque FHC sempre cuidou de agradar ao pessoal da casa-grande.

A história de um professor aposentado que amealhou uma fortuna de valor incalculável

Seu esquerdismo se reduziu a torcer por Emil Zatopek, a locomotiva humana de além Cortina de Ferro, na São Silvestre de 1953. Seu exílio no Chile consta entre suas melhores atuações, mesmo porque não houve por parte da ditadura ameaça alguma a justificá-lo. Até agora, fortes dúvidas se alargam em relação à célebre teoria da dependência, se deve mais a Enzo Falletto do que ao parceiro brasileiro. Maria da Conceição Tavares apontava nele o ouvinte atento às falas alheias, capaz de reproduzi-las com outras palavras para seu uso e consumo com a expressão impassível de Buster Keaton.

Certa vez, entrevistei o ex-presidente na véspera da eleição de 1994 e logo de saída constatei que à época de uma visita ao Brasil de Jean-Paul Sartre ele professava declaradamente a religião “vermelhinha”. “Não, não – respondeu de bate-pronto –, naquele tempo eu já misturava Marx com Weber.” Observei então que no prefácio do seu primeiro livro, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, tese do seu doutorado, ele mesmo escrevera ter usado a bem da sua análise o “método dialético marxista”. “Bem lembrado – comentou –, mas na segunda edição retirei a referência.”

Grande tormento da vida de FHC foi mesmo Lula, de quem cultivou uma inveja invencível e se distinguiu, além de outras diferenças, pela desfaçatez sem limites, e o sentimento agudíssimo nem arrefeceu diante da perseguição insana contra o líder do Partido dos Trabalhadores, ex-presidente como ele. Não somente evitou qualquer pronunciamento a respeito, e lhe caberia ao cabo de uma trajetória muito badalada pela mídia nativa, que, depois de celebrá-lo como salvador da pátria, passou a enxergá-lo como o Oráculo de Delfos. A resposta à pergunta de Alceu está aí, na viscosa habilidade de escapar das divididas para tornar-se um dos mais autorizados intérpretes da reação no infeliz país da casa-grande e da senzala.

 

Nestas nossas plagas brutalmente desiguais, uma figura desse porte fica credenciada a cometer todos e quaisquer pecados com a certeza da impunidade. Irretorquível o ato de acusação do jornalista Alceu, vão, no entanto, para atingir o inatingível, o hóspede cativo da mansão dos senhores, com todos os méritos para tanto. Resta aos leitores do livro de Alceu o retrato fiel de FHC e de suas ambições de duvidoso aristocrata do saber, mas certamente da grana.

 

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