Esperança em tempos distópicos.
Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com “Batismo de Sangue”, e 2005, com “Típicos Tipos”)
Distopia é o oposto de utopia. O apagar da esperança. Sou da geração que tinha 20 anos na década de 1960. Éramos viciados em utopia. Não queríamos mudar apenas os costumes (revolução sexual, nova gramática da arte etc.).
Queríamos mudar o Brasil e o mundo. Corriam em nossas veias valores, ideais, projetos históricos. Ousávamos enfrentar a repressão da ditadura. Inventávamos o futuro. O Brasil cabia em um único adjetivo: novo. O cinema era novo; a bossa, nova; o projeto de desenvolvimento encabeçado por Celso Furtado, igualmente novo.
Vivemos agora em tempos de distopia. Imobilidade, apatia, indiferença. Como Qohélet, autor bíblico do Eclesiastes: “Todas as palavras estão gastas… O que foi é o que será, o que se fez é o que se fará: nada de novo sob o sol!” (1, 8-9).
John Donne (1572-1631) dizia que “nenhum homem é uma ilha”. No reino animal, somos a espécie que mais precisa de cuidado para se tornar autônoma, cerca de 12 anos. No entanto, a cultura da desesperança nos induz a ficar ilhados em nossos confortos, medos ou inseguranças. Sabemos o que não queremos e manifestamos o nosso desagrado, a nossa frustração, até o nosso ódio contra tudo e contra todos nas redes sociais. Não sabemos, porém, o que propor ou buscar.
A crise é civilizatória. O mundo é dominado pela financeirização da economia. Um pequeno grupo de empresas transnacionais tem mais poder do que os Estados. Tudo é pensado em função da acumulação do capital e a preservação da natureza é considerada entrave ao progresso.
O que isso tem a ver com a espiritualidade? Ela é a essência de nossa subjetividade, altar no qual erigimos e adoramos os nossos deuses. Não há ninguém desprovido de espiritualidade. Há, sim, quem a nutre em fontes altruístas, como Buda, Moisés, Jesus ou Maomé, e quem elege o interesse egocêntrico como bem supremo. Nossas opções dependem de nossa espiritualidade.
A mercantilização dos bens da vida e das relações humanas propicia o surgimento de religiões sem teologia, igrejas sem liturgia, fiéis sem caridade. Abraça-se o transcendentalismo que atribui todos os males à luta entre o Bem e o Mal. Inútil buscar as causas dos males na vida social. Há que se resignar à “vontade de Deus” e orar para que o milagre aconteça…
O neoliberalismo dissemina a cultura de que “a história acabou”, nada haverá de mudar, e elege o Estado como culpado de todos os problemas, devido aos gastos excessivos, à corrupção e à politicagem. Assim, aceitamos trocar a liberdade pela segurança, os princípios pelos interesses, o público pelo privado, o bem pelos bens.
Entre os mais pobres, premidos pela imediata preservação da vida biológica, a ausência do Estado (escola, cultura etc.) os leva a buscar cidadania na pertença à igreja, e direitos sociais nos serviços assegurados pelo narcotráfico.
Onde há saída para a esperança? Para os imediatistas, nos avatares. Haverá de irromper um “messias” que fará chover bonança. A Bíblia é rica em períodos de desalento como o que ora atravessamos. Porém, os Profetas sublinham que só haverá saída, como na descrição de Ezequiel 37, se até os mortos puderem recobrar vida e se levantar.
A saída não depende apenas de minha vontade, de meu partido, de meu projeto. Depende de uma obra coletiva embasada em uma nova maneira de pensar e agir. De uma espiritualidade holística, socioambiental, como propõe o papa Francisco na encíclica Louvado sejas.
Por isso, Jesus não teve pressa para que o Reino de Deus, tal como seu Pai quer e a quem rogamos que “venha a nós”, acontecesse logo. Adotou a única atitude que faz da esperança proposta efetiva: organizou um grupo de doze companheiros, que se fizeram 72, que se fizeram 500… Plantou as sementes de um novo projeto civilizatório que se caracteriza, nas relações pessoais, pelo amor e a compaixão; e nas relações sociais, pela partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.