A Destruição do Estado de Direito e do Poder Judiciário
Samuel Pinheiro Guimarães | Brasília – 06/04/2018 – 12h00
A luta contra a corrupção não pode ser feita contrariando a legislação, e muito menos a Constituição Federal, nem com objetivos políticos.
- As práticas de corrupção e o comportamento ilegal têm caracterizado a ação das classes hegemônicas não somente no Brasil como em outras sociedades, desde as mais desenvolvidas, como os Estados Unidos, às mais pobres, como diversas nações africanas.
- Os principais integrantes dessas classes hegemônicas são grandes proprietários rurais; donos de grandes bancos e instituições financeiras; proprietários de grandes empresas industriais e de serviços; donos de grandes meios de comunicação; os principais rentistas; executivos de grandes empresas nacionais e estrangeiras; seus representantes no Poder Legislativo, no Poder Executivo e no Poder Judiciário.
3. No caso do Brasil, como no de outros países, desenvolvidos ou não, exemplos desse comportamento são:
. as práticas de “engenharia financeira” para evitar ou reduzir o pagamento de impostos;
. a pressão sobre os Governos para reduzir legalmente os impostos que incidem sobre os mais ricos;
. a evasão de impostos;
. os recursos enviados edepositados em“paraísos fiscais”, em geral decorrentes de atividades ilícitas;
. as fraudes praticadas por empresas para obter contratos públicos e em sua execução;
. a conivência dos grandes bancos com a movimentação de recursos provenientes de atividades ilícitas, inclusive do narcotráfico;
. o financiamento de campanhas políticas paraeleger indivíduos que vêm a constituir bancadas no Congresso para a defesa de legislação de interesse econômico e político dessas classes hegemônicas.
- A sociedade brasileira, composta em sua esmagadora maioria por trabalhadores urbanos (empregados, desempregados e subempregados); trabalhadores rurais sem terra e pequenos proprietários rurais; indivíduos “excluídos”, que recebem o Bolsa Família, cujo valor pode variar de 85 a 195 reais por mês; indivíduos sem teto nas cidades; e, finalmente, a classe média de baixa renda, é extraordinariamente honesta e trabalhadora.
- O Brasil não é uma sociedade corrupta poisos brasileiros, em sua enorme maioria, não são corruptos e, ao contrário,são vítimas da corrupção e das práticas ilegais das classes hegemônicas.
6. A luta contra as ações ilegais praticadas contra o Estado e a sociedade e contra a corrupção é de grande importância, pois em sociedades com extremas desigualdades sociais, a começar pelas de renda e riqueza, somente o Estado pode executar políticas redistributivas, pois as empresas, ONGS e indivíduos não têm a capacidade legal e financeira para atender ao número enorme dos atingidos pelos efeitos das desigualdades. - Todavia, a luta contra a corrupção não pode ser feita contrariando a legislação, e muito menos a Constituição Federal, nem com objetivos políticos.
- A “politização” da ação e a publicidade de opiniões na imprensa de membros do Poder Judiciário em todos os seus níveis, desde as Varas de Primeira Instância ao Supremo Tribunal Federal (STF), de procuradores individuais até a Procuradora Geral da República (PGR) e de agentes da Polícia Federal têm levado a práticas e decisões que agridem os princípios fundamentais do Direito e violam os direitos dos cidadãos.
- A pretexto do “excesso” de recursos legais, que pode levar à prescrição de ações, e de atender ao anseio público por “moralidade” e “punição”, juízes de primeira instância, cujo principal expoente é o Juiz Sérgio Fernando Moro, da 13º Vara Criminal Federal em Curitiba, com o auxílio de alguns Procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e de agentes da Polícia Federal, cometem uma gama de ilícitos para conseguir extrair delações que acusem determinados indivíduos em troca da liberdade eda redução de penas excessivas impostas por aqueles juízes.
- Essas delações são vazadas seletivamente para a imprensa ainda que sequer as investigações tenham sido iniciadas e menos ainda concluídas, ou que haja qualquer sentença definitiva condenatória.
- As delações que são “extraídas” através de prisões injustificadas e de longa duração e da imposição em Primeira Instância de penas extraordinariamente longas são delações de indivíduos que, para obter redução de pena, confessam,sob pressão, serem criminosos e que denunciam, muitas vezes sem provas, supostos cúmplices, em especial políticos.
- Enquanto isto, os vazamentos ilegais permitidos pelo juiz Sérgio Fernando Moro, e tolerados pelos Tribunais Superiores, insuflam a “opinião pública” contra os indivíduos mencionados em trechos, selecionados, de delações tornados públicos, com estardalhaço, pela imprensa a qual passa a exigir a sua condenação pelo Judiciário.
- A Operação Lava Jato, com o consentimento informal das altas instâncias do Poder Judiciário, tem cometido as seguintes infrações legais:
. a ação judicial a partir do argumento de que os “fins justificam os meios”;
. a desmoralização e humilhação pública,por agentes policiais,de suspeitos e acusados (condução coercitiva, uso de algemas, ostentação de força);
. a tortura psicológica, com aspectos físicos, (longas prisões, sem culpa formada) com o objetivo de extrair confissões e delações;
. desvirtuamento do uso da prisão provisória;
. a intimidação, através da imposição de penas absurdas, daqueles que são acusados por delatores;
. o vazamento seletivo de trechos de delações, de documentos e de informações sigilosas;
. a “convicção de culpa” arguida pelos juízes como fundamento para condenar acusados;
. a desobediência ao princípio constitucionalde presunção de inocência, que é o princípio básico do Estado de Direito, e que deve ser obedecido do início das investigações até o trânsito em julgado de sentença penal;
. a transferência para o acusado do ônus da prova;
. a aplicação absurda da teoria do “domínio do fato”;
. o desrespeito ao amplo direito de defesa;
. o desrespeito à garantia de imparcialidade da jurisdição;
. a sonegação de documentos à defesa de acusados;
. a violação da privacidade da família dos acusados;
. a extensão à família do acusado das consequênciassociais dadivulgação de suspeitas e acusações;
. a execração pública de delatados, indiciados e réus e a incitação da opinião pública contra esses indivíduos;
. a desobediência ao princípio da inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas (Art. 5°, inciso X, da Constituição Federal).
- A pretexto do combate à corrupção, à imoralidade, à morosidade dos processos na Justiça e à impunidade, essas práticas têm contribuído para a destruição dos fundamentos do sistema judiciário e de garantias individuais.
15. A Constituição Federal determina os casos de perda ou suspensão de direitos políticos:
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
III. condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
- improbidade administrativa, nos termos do art. 37, parágrafo 4.
Art. 37. Parágrafo 4:
Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos (…).
16. A perda dos direitos políticos e de direitos civis, como a liberdade, somente pode ocorrer ao indivíduo que seja considerado culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
- Todavia, a lei 135, chamada de Ficha Limpa, enumera uma série de situações em que a condenação em segunda instância, por um tribunal colegiado,pode acarretar a perda dos direitos políticos por 8 anos. A expressão “tribunal colegiado”, na realidade, pode significar uma turma de apenas 3 ou 4 juízes de um Tribunal Regional.
- A Lei Complementar 135, de 2010, é, portanto, de inconstitucionalidade flagrante, pois viola uma cláusula pétrea da Constituição Federal, que é clara ao determinar “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. (Art. 5°, inciso LVII) e, portanto, por não ser declarado culpado não deve cumprir pena.
- Por outro lado, duas decisões do STF, uma de fevereiro de 2016, por 7 a 4, e outra de outubro de 2016, por 6 a 5, consideraram constitucional o cumprimento de pena após a condenação em segunda instância. O STF, em realidade, “emendou” um dispositivo constitucional o que não pode fazer por ser competência exclusiva do Congresso Nacional emendar a Constituição.
- A Operação Lava Jato tem contribuído para beneficiar os interesses de empresas e Estados estrangeiros no Brasil:
. ao apresentar o Estado como a principal “causa” da corrupção na sociedade brasileira;
. ao apresentar o Estado brasileiro como ineficiente e culpado pelas dificuldades econômicas do país;
. ao“justificar” a necessidade de reduzir ao mínimo a competência e capacidade de ação do Estado;
. ao enfraquecer a capacidade de regulamentação do Estado brasileiro;
. ao justificar o programa de privatização (e de desnacionalização indiscriminada) implementado a toque de caixa pelo Governo Temer;
. ao enfraquecer as grandes empresas brasileiras, de capital nacional e estatais, no mercado brasileiro e no mercado internacional face a megaempresas de terceiros países e
. ao enfraquecer o Estado brasileiro em sua missão e capacidade de promover o desenvolvimento, de fortalecer a democracia, de defender a soberania e em sua ação internacional, inclusive no âmbito dos BRICS.
- O objetivo da Operação Lava Jato não é acabar com a corrupção nem na sociedade nem no sistema político e administrativo brasileiro. Se este fosse seu objetivo os juízes, procuradores e policiais seriam discretos e cautelosos em seus procedimentos para evitar a eventual anulação de processos e de sentenças e os Ministros de instâncias superiores coibiriam as atividades ilegais da Lava Jato.
- Em realidade, os verdadeiros objetivos políticos, em âmbito nacional, da Operação Lava Jato,em grande medida alcançados,são os seguintes:
. difamar os políticos em geral, em especial os políticos progressistas, e a atividade política;
. desmotivar as forças progressistas em geral;
. desmoralizar os trabalhadores como classe social;
. desmoralizar o Partido dos Trabalhadores como corrupto e apresentá-lo como igual aos demais Partidos;
. identificaro Presidente Lula como chefe de um esquema de corrupção no Brasil e por ela principal culpado;
. difamar e desmoralizar o Presidente Lula e impedir sua eleição.
- A solução para a “morosidade” dos processos na Justiça, todavia, poderia e deveria ser atingida por medidas simples:
. absoluta imparcialidade e transparência pública no sorteio dos processos entre Ministros dos Tribunais Superiores;
. cumprimento do prazo limite para devolução dos pedidos de vista de processos feitos pelos Ministros;
. julgamento dos processos pela ordem cronológica de sua entrada nos Tribunais Superiores;
. revisão do número de recursos possíveis;
. prazo limite para julgamento final após a data de ingresso do processo no Tribunal Superior.
- Por outro lado, o combate eficiente à corrupção implicaria uma reforma política que limitasse a influência do poder econômico nas eleições e na política e de nenhuma forma pode ser feito com desrespeito às leis e à Constituição por alguns juízesque se atribuíram uma “missão salvadora”.
- Em realidade, no Brasil se assiste hoje à destruição do Estado de Direito, do Poder Judiciário e da Constituição de 1988 a partir do momento em que, como em 1963, as classes hegemônicas sentiram escapar, ainda que parcialmente, a partir de 2003, o seu controle sobre o sistema político e estarem em risco seus privilégios e seu permanente e histórico comportamento corrupto e ilegal.
- Todavia, e finalmente, a luta histórica do povo brasileiro pela democracia, pelo desenvolvimento, pela justiça social e pela soberania prosseguirá,como sempre árdua, e jamais cessará até sua vitória final.
(*) Samuel Pinheiro Guimarães é diplomata, foi ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos durante o governo Lula e, atualmente, é professor do Instituto Rio Branco.