Intervenção-ditadura nasceu fazendo água

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PAULO MOREIRA LEITE

Intervenção-ditadura nasceu fazendo água

19 de Fevereiro de 2018
 

Quem já está apostando num crescimento em larga escala do apoio popular ao governo Temer em função da intervenção federal no Rio de Janeiro, deveria ser mais cauteloso e responsável em sua análise.

Verdade que a aprovação do pacote pelo Congresso deve ocorrer sem maiores dificuldades, num casa domesticada e corrompida, que há muito perdeu seus compromissos com a nação. Não vamos nos impressionar com isso, portanto.

O debate aqui é outro.

Sabemos que uma visão exagerada sobre uma eventual recuperação do mais impopular governo da história dos institutos de pesquisa, arquiteto de um projeto de Estado de Exceção iniciado com um impeachment sem crime de responsabilidade, só tem um efeito prático previsível: estimular o conformismo numa ocasião em que é preciso ampliar a resistência e garantir a realização de eleições livres em outubro, único caminho para a reconstrução de um pacto democrático.

Sabemos que o desmonte recente do Estado brasileiro gera uma situação geral de colapso, em particular nos lugares nos quais os efeitos danosos da Lava Jato se acumulam com a política de destruição da economia produtiva levado a cabo por Temer-Meirelles — aí se encontra a origem da falência do Rio de Janeiro uma vítima preferencial. Nesta situação, o apoio fiel da máquina de propaganda das Organizações Globo deve produzir um efeito previsível, em grande parte como resposta a uma angustia que ela ampliou e dramatizou.

O debate aqui é outro convém ouvir e valorizar outras vezes — mais decisivas, verdadeiras, do ponto de vista  da maioria dos brasileiros.

O sucesso de um vídeo com dicas de comportamento específicas para negros no momento de enfrentar uma blitz policial ou uma patrulha militar é sintomático como visão da intervenção na vida cotidiana da população atingida. “É triste ter esse vídeo, pensar esse vídeo”, diz o repórter Edu Carvalho, do FavaladaRocinha.com. “Mas é altamente necessário”.

A leitura de uma nota publicada pela Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, entidade fundada em 1963 para resistir às remoções promovidas pelo governo Carlos Lacerda ajuda ter uma visão realista sobre o processo em curso e seu possível impacto sobre a população do Rio de Janeiro e do país.

O tom é de quem já viu esse filme mais de uma vez e não tem a menor esperança de qualquer melhoria. “Alertamos que essa nova intervenção não começou ontem”, diz a Federação, deixando claro que, após múltiplas ações espetaculares em tempos recentes — dentro e fora de eventos internacionais de envergadura como Copa, Olimpíadas, Rio 92 — não se assistiu a nenhuma melhoria significativa nas áreas atingidas.

Mencionando um caso  específico, a favela da Maré, a nota recorda um  traço conhecido de operações que envolvem custos altíssimos, são apresentadas em tom de produções de Hollywood pelo Jornal Nacional para chegar a resultados pífios. A nota lembra que uma ocupação militar de “14 meses, envolvendo 2500 militares, tanques de guerra, helicópteros” implicou num custo de diário de R$ 1,7 milhão de reais. A soma chega a R$ 714 milhões. Em contrapartida, “nos últimos 6 anos só foram investidos apenas 300 milhões de reais em políticas públicas voltadas para o desenvolvimento.” Na ponta do lápis, a contabilidade econômico-social é assim. Enquanto se investia 136 000 reais por dia em políticas sociais  gastou-se em atividades de repressão uma soma 12 vezes maior.

Nas favelas do Rio, diz a nota, “a ditadura não acabou. Ainda vemos a polícia invadindo residência sem mandatos, pessoas sendo presas arbitrariamente, ou até mesmo casos de desaparecimento”.

Com experiências desse tipo na memória, é duvidoso imaginar que a intervenção-ditadura planejada no Jaburu terá a acolhida que os marqueteiros do Planalto sugerem em conversas com jornalistas, na esperança de fazer crescer a impressão de que uma recuperação real de Temer encontra-se a caminho.

Não há motivos para se imaginar viradas milagrosas ocorridas no passado, como em 1986, quando José Sarney saiu do inferno em poucas semanas depois do Plano Cruzado, ou Fernando Henrique Cardoso, que viveu percurso semelhante em 1994.

Considerando a já monótona repetição de intervenções federais no Rio de Janeiro na última década, todas encerradas em fiascos  evidentes, não se pode destacar a repetição de outro fenômeno — dos planos econômicos da década de 80, na qual o fracasso do projeto anterior tirava a credibilidade do seguinte, este do próximo, e mais um, até que no final chegou-se a um certo plano Arroz com Feijão, cujo nome dizia tudo.

Ao contrário do que se viu depois da Quarta Feira de Cinzas,  nem a imprensa que apoiou Temer no golpe contra Dilma encontra-se   unida para defender a intervenção. Em contraste com a Globo, o distanciamento e desconfiança de jornais orgânicos da elite paulista e financeira também quer dizer muita coisa. Os jornais não gostaram da estratégia Jaburu, pela qual o presidente abandonou de vez qualquer perspectiva de entregar o grande troféu prometido pelo golpe — a destruição da Previdência pública — para salvar a própria pele. Numa postura rara, desconfiam de Temer, questionam a prioridade.

No editorial “Desgoverno”, a Folha  comenta a intervenção dizendo que “motivação e suas chances de eficácia” suscitam “dúvidas, reservas e temores”, para concluir que elas sinalizam para um enfraquecimento do governo: “será lamentável se o ímpeto reformista ceder lugar a uma busca por popularidade amarrada em bases duvidosas”.

Num tom ainda mais duro, no editorial “Uma intervenção injustificável”, o Estadão,   bateu de frente no primeiro dia: “não há razão objetiva que justifique a intervenção federal restrita a segurança pública, no Rio de Janeiro (…)  A situação naquele Estado não se tornou calamitosa do dia para o outro, a ponto de demandar uma medida tão drástica exatamente agora”. Mais adiante, o jornal diz: “a primeira conclusão a que se pode chegar, considerando o timing, é que o presidente precisava criar condições para abandonar a reforma da Previdência, em razão das dificuldades evidentes de aprová-la”.

No Estado, o ministro do STF Marco Aurélio Mello mantém o tom crítico e deixou clara objeção ao emprego de tropas do Exercito na luta contra o crime organizado. Falando em “esperança vã”, Marco Aurélio lembrou o “desgaste que pode haver para o Exército brasileiro.” Mesmo capaz de elogiar o general Braga Netto, disse que sua trajetória nas Forças Armadas “não é suficiente” para prever um trabalho adequado. “O problema passa pelo aspecto social”, disse, sublinhando o contexto de “absoluto desequilíbrio entre serviços essenciais, necessidades da população, entre mão de obra ofertada e empregos”.

O erro de exagerar os benefícios que — hipoteticamente — Michel Temer pretende  colher nos meses que virão, tem a utilidade de servir de cobertura para quem busca um atalho para aderir a um governo que segue em decomposição, sob liderança de um presidente que acima de tudo busca de proteção jurídica para enfrentar a Lava Jato após 1 de janeiro de 2019.

No artigo “A jogada bonapartista de Temer”, no qual faz um esforço para entender a realidade sem a “retórica balofa e repetição dos esquemas prontos de antemão”, o professor Jaldes Meneses, professor de História na Universidade Federal da Paraíba, pede que se “desconfie da teologia política dos que não se surpreendem com os acontecimentos, como se já os soubesse por vê-los em alguma bola de cristal”.

O professor reconhece que a intervenção federal pode resultar “em consequências diretas na montagem em curso de um Estado de Exceção. ”

Mas recorda que a decisão de Temer é de “ordem de conjuntural e situada no plano da ação política imediata”, envolvendo um governo que chegou  “acuado” à Quarta Feira de Cinzas.  Contrariando o senso comum que enxerga a intervenção como nova fase de uma operação planejada anteriormente, Jaldes escreve que Temer “partiu para o tudo ou nada” porque o “golpe estava dando errado e não dando certo”. Este é o jogo do momento.

É o ponto que ninguém pode esquecer, concorda?

 

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